Ainda adolescente, nas férias de verão em Santo Antão, entre uma paixão e outra, devorava jornais velhos, almanaques, os livros de banda desenhada que andávamos as trocas desde fedelhos, os livros amarelecidos do meu pai que surripiava escondido da minha mãe e os romances “Júlia” e “Maria” da minha irmã, que ela lia as escondidas e que me emprestava fingindo-se aborrecida. Aos quinze anos não sei porque ‘cargas de água’ comprara numa feira de livros a obra ‘Três Ensaios sobre a teoria da Sexualidade’ de Sigmund Freud e outros dois livros de psicanálise, que eram uma espécie de leituras de alguns aspectos das teorias dele. Nem adianta dizer que não entendi patavina dessas últimas leituras, apesar da avidez com que as devorei, de cenho franzido e com um enorme dicionário a frente. O certo é que abriram meu apetite pelos livros e contribuíram para melhorar meu desempenho na língua portuguesa. Como prémio ganhei elogios da bonita professora de português quando, campónio, fui estudar a Mindelo. Continuo com o mesmo apetite. Hoje meus gostos são selectos. Existem muitos livros que abro e abandono. Os jornais há já dez anos que não os leio, nem os impressos, nem os modernos on line. Também não vejo telejornais. Quando sinto aquela vontade incontrolável de me actualizar (de estar a par do sangue derramado e da política, com a devida perdão pelo pleonasmo) vejo cerca de dois minutos e meio da novela das oito, sendo que nos um minuto e meio finais já sou um viajante do vale de Morfeu. Pena não poder espreitar in locus o clube de livros http://obviousmag.org/archives/2010/11/naked_girls_reading.html mas, na cota de ignorância que a mim me toca vou devorando uma suposta ‘boa leitura’. É, assim, na verdade, que me mantenho devidamente informado...lendo Kafka! 1. Li, duas vezes seguidas, em menos de 24 horas O Vendedor de tempo, de Fernando de Bes (2005).
Sinopse
O Vendedor de Tempo é uma fábula satírica sobre a sociedade de consumo e sobre a alienação humana derivada do sistema capitalista de produção, que pode engendrar tanto pólos de liberdade como de aprisionamento, se permitirmos que o SISTEMA assuma o controlo das nossas vida e do nosso TEMPO e, nos cristalize em padrões alienadores e destrutivos. Uma leitura agradável e fácil.
"Era uma vez um tipo comum que vivia num sítio aleatório, num andar comum, com uma hipoteca para toda a vida. Nada fora do normal. Salvo por um entusiasmo de juventude, quiçá uma obsessão: o estudo do sistema reprodutivo das formigas de cabeça vermelha, entusiasmo esse a que não se podia dedicar por falta de tempo e que com o passar dos anos acabaria por ser... uma verdadeira bomba-relógio! Este é o protagonista da nossa história, um cidadão anónimo que, com uma ideia de negócio irracional em que ninguém acredita, põe em cheque a sociedade de consumo". (Fernando de Bes)
2. Crime e castigo, 1866, um clássico da literatura universal magistralmente construído por um dos maiores romancistas de todos os tempos: Fiódor Dostoiévski (1821-1881).
Sinopse
Raskólnikov é um ex-estudante de Direito, extremamente pobre e angustiado que quer fazer 'algo' e tornar-se 'alguém'. Num artigo supostamente científico classifica os homens em ordinários e extraordinários, numa tentativa de justificar acções em prol do desenvolvimento da humanidade. Mergulhado numa angústia profunda e doentia, numa mistura entre um desvario psicopático e um idealismo niilista, ele planeja e mata a machadada uma velha agiota. A contragosto assassina também a irmã desta, que vira acidentalmente o cadáver no chão. Isto porque o protagonista, por um descuido, para ele próprio incompreensível, esqueceu-se de fechar a porta do apartamento da velha. Rouba moedas e jóias dos quais não faz uso nenhum e perambula delirante pelas ruas de Petersburgo. A partir de então desencadeia-se um drama interno de profundo sofrimento, arrependimento, angústia e punição…em torno do qual se configuram histórias igualmente dramáticas de personagens com existências destroçadas pela miséria e pela dor, numa viagem magistral ao mundo interno dos mesmos.
3. O processo. Franz Kafka, 1925.
Adoro as obras de Franz Kafka (1883-1924) porque poderiam e são reescritas em 2011. Se qualquer um de nós for ao palácio do governo, ao parlamento, ao palácio da justiça, ao tribunal, à procuradoria da república, à câmara municipal, a polícia judiciária, ao cartório ou à qualquer repartição pública tratar de um assunto qualquer e, pudermos, com maestria descrever essa saga e seus personagens, então, seremos a encarnação perfeita do escritor Franz Kafka. Li O Castelo há dez anos atrás e há dois meses reli o O Processo. Quando puder irei ler e reler toda a obra de Kafka e a recomendo. Temos a imensa sorte que os desejos desse escritor tivessem sido frontalmente violados, isto é, que suas obras não fossem publicadas mas sim queimadas após a sua morte.
Sinopse
Josef K. acorda de manhã a ser interrogado e acusado sem saber como, por quem, nem porquê. Apanhado no turbilhão incompreensível, burocrático e patético do sistema judicial não consegue nem condenação, nem inocência. Torna-se prisioneiro da impossibilidade e do absurdo. Não se sabe como funcionam os tribunais, os advogados são inúteis, os magistrados ‘crianças mimadas e rabugentas’, os funcionários corruptos. A certa altura do trama Josef K. que arrasta sua vida pelos corredores intermináveis dos ‘tribunais’ começa e duvidar da sua própria inocência. A ausência de desdobramento do seu processo se encontra envolto em burocracias e secretismos. A defesa é impossível porque a acusação em si já é uma sentença. ‘A inocência verdadeira não existe’. A inocência parcial realiza-se à custa do adiamento do julgamento e da corrupção. O romance é uma crítica metafórica aos mecanismos jurídicos, dogmáticos, obscuros, incompreensíveis e inacessíveis para a grande maioria dos cidadãos.
(continua...)