A Morte de um Artista...
Foto de Olavo da Luz: Vista de Lombo de Macário, onde residia Teodoro, apartir da casa dos meus pais.
Na semana passada morreu Teodoro de Marcelino, um cidadão anónimo, que na melhor das hipóteses fazia parte da lista de eleitores. Para mim, mais um dessa lista e, feliz ou infelismente de outras , Teodoro é hoje esse fino traço de saudade que atravessa meus ‘olhos grandes’ (expressão do Paulino) e deixa uma promessa de lágrimas e um suspiro de paixão. Revejo seus olhos pequenos e bonitos, sua voz firme e sua amabilidade paternal. Me arrependo de não ter saido do carro há duas semanas atrás para o abraçar em vez de me ter limitado a um aperto caloroso de mão. Ele e a esposa vinham da missa domingueira. Pelas minhas contas, apesar da altivez e firmeza de um jovem andava pelos seus 70 anos, embora o visse como uma espécie de homem imortal. Havia decidido que iria pedir que me fabricasse um tambor mas, não quis importuná-lo naquele momento e nem estragar o sabor daquele encontro fugaz e casual.
Teodoro é um desses homens que, sem heresia, poderia ter dito “eu sou o dono da vida, eu a criei”. Não o diria com o logos e nem por escassez deste, característica completamente avesso ao parlador homem de Santo Antão, mas com suas enormes mãos calejadas. No limite entre a morte e a criação, digo-o pela natureza da matéria-prima e da ferramenta, a balança de Teodoro pesou inconfundivelmente para a vida. Cesteiro exímio, tranformava o caniço e a sua faca afiada em vida, rítimo, harmonia, beleza. De tal forma que quem via seus balaios estilizados queria sempre um e, te-lo-ia a baixo custo, com a humildade e a presteza do Homem Santantonense. Visionário, transformou o balaio utilitário em souvenires que hoje saciam o imaginário de muitos andarilhos emigrantes pela Europa e pelas Américas. Sua tira de transagem era personalizado, mais fino, escolhido a dedo, sem mácula. O rítmo da sua transagem, tão bem bem balanciado, dir-se-ia uma toada de São Pedro saída do tambor que tocava com tamanha harmonia, alegria e sobriedade no recreio da sua arte de cesteiro, pelas múltiplas festas de romaria. Tambor esse que ele mesmo fabricava e coloria.
No pequeno mundo do vale de Chã de Pedras Teodoro de Marcelino é um artísta sobejamente conhecido. Sua obra faz parte da cultura visual do seu povo. Vejo-a claramente enquanto penso e escrevo. Autor dos incontáveis ‘Tambaques’ repletos de espigas multicolores dos anos de fartura, que encimam quase todas as casas do vale e que transbordam para as outras ribeiras, dos Balaios grandes e pequenos que transportam e transportaram durante décadas a cheirosa cachupa guisada, o peixe frito, o aromático café de Fajã dos Bois, a batata assada saída dos calor dos alambiques, o cheiroso grogue de cana sacarina e tantos outros aromas e cores, destinados aos rústicos e sacrificados homens das lavouras. Autor de centenas de Bandejas, irmãs gémeas do pilão, que nas tardes remotas ritma de forma nostálgica e quase silenciosa a separação do farelo, aprumando o milho e a farinha para a cachupa diária e para o fumegante cuscus. Permeando esses prazeirosos sutentáculos da vida dos briosos Homens dos místicos vales de Santo Antão, lá estão sempre essas mãos aparentemente calejadas, porém de uma suavidade e de uma finesa propícias a melhor e mais deliciosa carícia.
No entanto, a arte e a mestria de Teodoro de Marcelino foi soterrado com ele. Tal como tantos outros construtores da vida e das história deste país, ninguem apreendeu e ninguem registou os seus conhecimentos, lamentavelmente.
Quanto a mim, para além das saudades carrego comigo essa teimosia: “vou ter um tambor com a tua assinatura, Teodoro de Marcelino” e , então, dar-te-ei o abraço que, naquele dia, te soneguei por mera distração.
Um grande beijo, meu irmão.
4 comentários:
Um texto delicioso (paradoxalmente, porquanto fala de morte)
Fizeste-me lembrar de outros artistas da ILHA que, como escreves,na melhor das hipóteses fazia/fazem parte da lista de eleitores.
São os casos, por exemplo, de Frénk de Fajã d'Bóxe com os seus balaios e outras engenhocas feitas a partir do caniço; ou então Nhô Lela Ménkin que durante décadas trasformou as nervuras das folhas de bananeira em matéria prima para as fomosas esteiras.
Esses aristas anónimos merecem todo o nosso carinho.
Obrigado p'la partilha
Abraço
Meu caro,
Não o conhecia, o Teodoro. Mas enquanto te leio, quase que o vejo assim ligeiramente dobrado sobre duas tiras de cana de caniço a construir história. Esta história que agora, quase irremediavelmente, parte com ele...
Não o conhecia, mas pelas tuas palavras ficou-me agora esta saudade fina... Dos "Teodoros" anónimos que vão desaparecendo lentamente daquelas ribeiras e fajãs com a nossa memória colectiva a tiracolo, muitas vezes sem nos darmos conta. Porque estamos excessivamente ocupados a construir teorias elegantes, no aconchego da tal sala com ar condicionado.
A esta hora, meu irmão, deixo-te um verso eloquente de um poeta que viveu há muito estas ilhas:
"(...) Eu queria ser simples,
naturalmente,
sem o propósito de ser simples! (...)"
Forte abraço,
Agora o Sr. Teodoro já está registado na net e com ele os muitos outros que infelizmente ficam ou ficaram no anonimato.
Meu amigo Olavo, a riqueza dos Homens que temos pelos nossos vales é tamanha, que nem damos conta. Infelizmente vão-se desaparecendo e ficamos lamentar.
Mas é preciso continuar a registrar esses pequenos traços dos nossos Homens.
Aquele abraço.
...já tenho a promessa de um tambor do Teodoro, fabricado no ano 2000 e, no fim de semana passado em Santo Antão estive 'rodeado' dos seus artefactos de cestaria...a recolha e promoção desses aspectos da nossa cultura, das nossas memórias precisam ser resgatados e preservados para salvaguradar a dimensão humana da vida, no caso específico do homem de Santo Antão!
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