As condições constitucionais que a natureza ofereceu ao ser humano, nomeadamente, o tamanho do cérebro, a linguagem e as emoções permitiram ao animal-homem alçar vôos jamais sonhados pelos seus antepassados. A pessoa humana não se limita a usufuir-se do mundo natural. Ele cria literalmente uma multiplicidade de mundos. Num processo dinâmico e dialético, ao criar ele recria a si próprio continuamente, de tal forma que podemos afirmar que no domínio humano nada mais é natural.
Porém, a revelia das suas fantasias e dissociações, das capacidades infinitas resultantes da inteligência, da intuição e dos afetos, a pessoa humana continua a ser um animal. Um animal muito frágil e, sobretudo, um animal consciente da sua inefável finitude, da sua morte. Como se tal não bastasse, a sua sobrevivência depende do tal ‘pacto civilizatório’ que o obriga a prescidir-se de grande parte dos seus desejos, resultantes dos seus instintos primários (o agressivo e o sexual), para que possa viver em sociedade e sobreviver fisica e existencialmente.
É nesse processo dialético do fazer e do fazer-se que nasce a cultura, essa caldeirada de produções intelectuais, de religiões, de artefactos, de ideossincrasias...É nesse turbilhão estetizado que a pessoa humana se eterniza. Então setenta anos de vida parece uma eternidade. Nesse intervalo insignificante, a dimensão do cosmo, ele ama e odeia, vive dores que beiram o insuportável, procria filhos e obras, descobre a insignificância e a grandeza da vida, troca as voltas ao inferno e ao céu e, decobre a irremediável solidão para além de todos os romantismos. Nesse jogo frenético, muitas vezes incompreensível, dribla o monstro indomável chamado natureza, engoda e contradiz habilmente a sociedade que já estava ‘pronta’ ao nascer, encontrando por esta via canais de satisfação de desejos íntimos, acessando uma liberdade que jamais conseguiria de forma aberta. Realiza desejos ‘incivilizados’ por vias civilizadas. Mata e morre sem matar nem morrer, perpetuando a raça a revelia dos seus instintos.
A cultura não é apenas importante para o homem. O homem é cultura. Ao subtrair a cultura da vida humana a pessoa torna-se um animal banal como outro qualquer. Portanto, promover a cultura é promover o homem. É uma praxis humanista. Não promover a cultura é negar a existência humana, reduzindo o homem à condição de animal de capoeira.
Em Cabo Verde temos deparado com um conceito pobre e ignorante de cultura. Prevalege o pré-conceito de cultura/lazer. Esse engodo vem da ilusão de que um espectador, por exemplo, vai ao teatro ou ao cinema para se divertir. Pura ilusão. O espectador pouco tem de espectador. Ele participa emocional e activamente do trama. Ao se identificar com os personagens ele mata e morre, penetra e é penetrado, ama e odeia. Revive num nível irreconhecível, para ele e para nós, eventos importantes da sua vida psíquica. Escancara e sara feridas, se emociona, ganha e perde no espaço confinado de uma sala escura de cinema ou de teatro. E, irritado, introspectivo, apaziguado ou de lágrimas ressequidas num rosto iluminado saí para a brisa da noite menos animal e mais humano, mais civilizado, mais saudável, mais aberto para potenciar o amor e lidar com a sua agressividade e com a sua sexualidade. Mais apto para ampliar o campo do ‘instinto da vida’ e contrariar o ‘instinto da morte’, que lutam incessantemente lá no mais fundo do seu ser. Ilude-se quem pensa que os o risos arrancados pelas cenas de uma comédia são apenas tiradas ilariantes de um dom cómico. Atrás de toda comédia esconde-se uma inimaginável agressividade, sublimada, disfarsada e descarregada fisicamente através do riso.
Falo das artes cénicas a título de exemplo e das artes em geral como elementos culturais, mas poderia falar da pintura, da dança, da música, da arquitectura, da ciência, da religião.
Um político que conseguisse entender a função da cultura na existência humana não hesitaria em colocar esse sector no centro dos seus projectos. Assim fazendo, a sociedade que ele lidera teria mais saúde, melhor educação, melhor produtividade e criatividade, melhor sociabilidade, menos violência, mais ética, mais justiça. Não é e não será esse o nosso caso. O máximo que conseguimos até hoje é o discurso patético e alienado da promoção da ‘industria cultural’. Este discurso nada mais é que uma forma polida de disfarsar, com um sorriso amarelo, o projecto de não investir no sector. Essa idéia da ‘industria cultural’ muito mensionada nas últimas campanhas eleitorais pelos dois líderes dos nosso maiores partidos políticos, traduz-se na concepção que insinua que ‘se não podes oferecer rosas frescas, supostamente por problemas climáticos e/ou financeiros, ofereça rosas de plástico made in china´ porque afinal estamos numa era industrial e de primazia incontornável do capital sobre a pessoa humana.
O que esses líderes não entendem é que investem milhares de contos a tratar doenças que não existem, somatizações da infelicidade humana. Que nos ambulatórios de Santo Antão à Brava os médicos dedicam horas a consultar pessoas que de doença física nada têm, no entanto, prescrevem drogas e análises clínicas caríssimos que saem dos cofres públicos. Que esses mesmos pacientes preregrinam de médico em médico a procura de um desesperado viés para fugir a angústia advinda da ausência de meios de realização simbólica. Que ‘o novo alcoolismo’, que muitas doenças psicossomáticas graves, incapacitantes ou mortais são produtos da infelicidade humana que favorece o ‘instinto da morte’, a desistência da vida, o suicídio disfarsado.
Não entendem que a violência que graça nos centros urbanos, que nos constrange e terrorrifica, e para a qual não têm nenhuma solução a vista, para além dos dorminhocos guardas guineeses, é o produto óbvio e linear dessa mesma carestia de meios de realização simbólica, de sublimação, de canalização e ressignificação dos instintos agressivo e sexual, que são fenómenos humanos e naturais. Que essa violência resulta do compreensível ‘mal estar na civilização’, mas que é anti-civilização. Rasga o pacto civilizatório. Mas também que, a despeito de ser destituido de ética, é a reacção mais saudável e coerente dos cabo-verdinaos nas últimas três décadas. Porque violência gera violência. E é o próprio estado que despoleta essa violência através das suas políticas e prácticas carregadas de violência simbólica e de acuamento. Que a reacção desses jovens, oriundos das periferias era absolutamente previsível, mas agora nos discursos aparece, por ignorância ou por hipocresia, como um ‘fenómeno novo e imprevisível’.
O que que não investimos na promoção cultura, na promoção do homem caboverdiano investimos e invetiremos em quadriplicado nos sectores da saúde, da segurança, da segurança social mas, sobretudo, pagaremos um preço incalculável através do terrorismo que nos invade ao enfiar nervosamente a chave na porta da nossa casa e na sensação vaga e desconfortável de infelicidade que percorre o coração de muitas pessoas de norte a sul deste país, que mais tarde ou mais cedo se tranformará em auto ou hetero agressividade, restando-nos como únicas saídas matar ou morrer, como se a morte de um homem tivesse alguma importância e, pior, com custos financeiros e sociais tão elevados, que configuram um luxo supérfulo de uma sociedade extremamente rica.
Terapeuta Ocupacional
3 comentários:
Excelente! Excelente mesmo. Parabéns!
Man,
Sem palavras... Mais uma vez.
Texto brilhante - espero que seja lido por aquele fulano a quem chamam (não sei por que cargas d´água), "quem de direito"!
Abraço,
Diaza Olavo...
Hoje m bem e jam otxa um knikinha daga bem friskin..
Obrigado!
Val
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