Fotografia de Man Ray
Um “novo alcoolismo” ou duas décadas de intoxicação alcoólica com a cumplicidade do estado de Cabo Verde
Com a abertura política na década de 90, numa mistura entre o favorecimento de agricultores revoltados com as políticas do regime ditatorial, com o intuito de silenciar a intenção de não cumprir as promessas de justiça feitas em campanha e, uma diluição crescente da autoridade que se deslocou do autoritarismo para a ausência, liberalizou-se a produção de aguardente a partir do açúcar refinado na ilha de Santo Antão. Somada a produção da Ilha de Santiago, que em regra era de má qualidade, toneladas de aguardente com alto índice de cobre, de álcool metílico e de outras substâncias nocivas a saúde, totalmente fora dos parâmetros definidos pela OMS relativamente aos produtos para consumo humano, foram introduzidas no mercado cabo-verdiano.
A partir de então milhares de pessoas, na sua grande maioria jovens do sexo masculino passaram a morrer de cirrose hepática com uma enorme frequência. Nota-se que a cirrose hepática é uma anomalia orgânica que resulta de longos anos de consumo persistente de bebidas alcoólicas. Normalmente decorre do alcoolismo crónico. Estranhamente, mas nem tanto, a média de idade cientificamente prevista para o surgimento dessa doença a nível mundial, em Cabo Verde praticamente foi reduzia para a metade. Isso indicia que não tem sido necessário uma “carreira” de alcoólico para o surgimento do mesmo. Esse evento aponta para uma elevada toxicidade da aguardente produzido em Cabo Verde, a partir do açúcar refinado. Para além da cirrose várias doenças dos sistemas digestivo, cardiovascular, entre outros, para além dos distúrbios mentais, dos problemas sociais e económicos são diariamente registados.
A título de exemplo, segundo fontes credíveis, apesar de algumas falhas nos registos estatísticos, no banco de urgências do Hospital Regional da Ribeira Grande de Santo Antão, a patologia prevalecente na procura do serviço é o alcoolismo, que muitas vezes ultrapassa os 90%/dia.
O estranho é que nas discussões sobre o assunto “Grogue de Santo Antão” prevalece o discurso “económico” e o discurso de “valorização” do mesmo, abstraindo-se do problema da “saúde pública” e do problema humano e social.
Milhares de famílias perderam o seu principal provedor. Muitos filhos perderam o pai e ficaram marcados pelo fenómeno do alcoolismo, que deixa marcas traumáticas profundas no psiquismo humano. Marcas que terão que carregar pelo resto da vida, com todas as suas consequências, inclusive a maior probablilidade de se tornarem também alcoólicos. Cabo Verde vai perdendo, principalmente nas zonas rurais, muita mão-de-obra. Milhares de contos são gastos no tratamento reiterado de doenças agudas e crónicas derivadas da adicção etílica. Gastos esses que nem sequer podem ser compensados pelos impostos arrecadados a partir dessa “indústria”.
O silêncio das instituições públicas nos níveis local e central em relação a essa “chacina” é uma das piores aberrações que já presenciei na minha vida. Para terem uma ideia da gravidade da toxicidade desse produto seria de longe preferível as pessoas comprarem álcool etílico a 90º nas farmácias, dilui-lo em água potável e beber. Os danos a saúde seriam de longe menores.
A produção da aguardente nos moldes anteriores a década de noventa era mais vantajosa do ponto de vista económico para os verdadeiros agricultores. O que faltava na época era valorização e a promoção do mesmo como um produto artesanal de luxo. Nos moldes actuais é muito vantajosa para os não agricultores. Esses são uma espécie de “traficantes legais de drogas”, com a anuência do próprio estado.
Pergunta-se que raio de estado é esses que permite o assassinato dos seus cidadãos? Se me perguntassem a mim: planto cannabis sativa (padjinha) ou faço aguardente de açúcar? Responderia sem hesitação: liberalizem a padjinha. Apesar de conhecer profundamente os males derivados dessa droga cujo consumo persistente levaria a distúrbios mentais, esses têm sempre possibilidades de tratamento. Pelo que saiba ainda não se descobriu a fórmula para ressuscitar os mortos.
Confrontados com o silêncio do estado, que deveria ser o primeiro defensor dos cidadãos e dos seus direitos mas, que pelo contrário se transforma em cúmplice de práticas destrutivas, ele (o estado) torna-se o único e verdadeiro responsável por todas essas perdas humanas e pelas suas consequências.
Antes de se equacionar qualquer solução para o desenvolvimento económico de Santo Antão, com enfoque para a questão da produção e valorização do “grogue”, é imperativo discutir e solucionar essa violência perpetrada por meia dúzia de oportunistas, engajados no enriquecimento fácil. É imperativo que o estado assuma de forma responsável seu papel como regulador e fiscalizador dos produtos destinados ao consumo humano. Prioritariamente promovendo a proibição e a eliminação da aguardente fabricada a partir do açúcar refinado. Pela toxicidade do mesmo e pelo problema gravíssimo de saúde pública daí decorrente, um estado responsável confiscaria e destruiria as toneladas desse produto armazenados em Santo Antão, e não só.
Para concluir diria que um dos factores preponderantes na origem de qualquer toxicomania é exactamente a oferta. Esta, infelizmente, é coisa que não falta por aqui.
Olavo da Luz
Terapeuta Ocupacional