A irreverência do pensamento e a simplicidade de linguagem do Mário Quintana
Neste último fim de semana comentava com amigos a minha dificuldade em ler determinados poetas caboverdianos, apesar de um insistente esforço nesse sentido. Dizia-lhes que considero a escrita poética como uma actividade essencialmente intuitiva e lúdica e que, quando nela se põe muita "racionalização" ela se descaracteriza e se torna fastidiosa para o leitor e, acredito, até para o poeta. Um poema não é um teorema. A arte como dizia Freud está exactamente na conta-mão da civilização que é movida pela razão. A criação e fruição artísticas juntamente com o sexo salvam o homem da prepotência da razão e o proporcionam uma grande liberdade ao abrigo do principio do prazer, principio este que é preciso sancionar para a instauração da civilização.
Recorrendo a imagem do último post do Paulino Dias (http://blogdopaulino.blogspot.com), Cabo Verde parece o reino das máscaras . As pessoas levam seus papeis sociais e suas idiossincrasias muito além do necessário para o circuito das trocas socioprofissionais e vivem um faz-de-conta permanente e desnecessário. A falta de autenticidade, de espírito lúdico e do bom humor esteriliza as pessoas e os torna menos humanas. Para além disso é uma grande ilusão a suposição de que o ser humano seja essencialmente um ser racional. A inteligência é essencial mas, só o é a mistura com as emoções e com a intuição. A tentativa de subjugar estes últimos é sinónimo e burrice e de uma profunda incompreenção da vida e da existência humanas.
Essa minha verborreia me fazem lembrar a irreverência e o linguajar de Mário Quintana, um dos poetas que considero que se deve comer quando se gosta da arte. É um dos que escreve como se estivesse simplismente respirando:
Ruados Cataventos
Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!
Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...
Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...
Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando!
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando!
Mario Quintana - A Rua dos Cataventos
Auto-retrato
No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!
Mário Quintana (Apontamentos de História Sobrenatural)
...e depois atira com a irreverência que lhe é característica: "Quando alguem pergunta a um autor o que ele quis dizer, é porque um dos dois é burro". Nos casos que me referi faço votos que seja eu o jumento.
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